segunda-feira, 3 de outubro de 2011
O CIGARRO MOLHADO
quarta-feira, 21 de setembro de 2011
DUAS MIL LUAS
terça-feira, 6 de setembro de 2011
OS AROMAS DO MUNDO
Era, como me disse na primeira vez que nos vimos, um europeu degenerado. Seu caráter, confessava com saudade, fora amolecido pelo calor dos trópicos, e ele os conhecia “na cintura baixa do mundo”, de um lado e do outro. Vivera a boa latitude sul na América, na África e na Ásia, e guardara melhores lembranças de Madagascar, aonde fora como funcionário do colonialismo francês, menos por necessidade e mais pelo exotismo da grande ilha. Ali se convertera a vagabundagem bem amparada pela renda de vinhedos da Gironda, explorados por sua família desde os tempos do ducado de Aquitania.
“Descobri que, nos trópicos, os sentidos se aguçam, porque as coisas têm mais essência. Não me lembro bem dos aromas de nossa casa, e os meninos sempre têm narinas sugadoras, mas não me esqueço do cheiro das mestiças dos portos de Majunga e Tamatave”, me dizia, em um bar da Schiffamtsgasse, em Viena, bem perto de Danúbio.
Tenho sempre o espírito desarmado diante dos estranhos, porque me tocou viver muito entre eles e ser um deles. Naquele tempo eu morava em Praga e ia com freqüência à Áustria. Ele estava de passagem, e fiel a si mesmo, buscara o cais fluvial. “Quem não tem mar se arranja com os rios”, me falava enquanto tomávamos excelente vinho romeno.
E continuou a defender a tese de que só vale a pena viver nos trópicos, mas enquanto se pode bem desfrutar dos prazeres do mundo. “Não são apenas os cheiros: são também as cores. Não há delicadeza nos tons; são agressivos. Tampouco se separam bem uns dos outros, as cores acompanham a vontade geral de promiscuidade e de troca de identidade: há verdes que amarelam, e amarelos que invadem o campo do azul. Agora, quando chegam as cataratas aos olhos, para que servem os trópicos? Quando bambeiam todas as pernas do homem, por viver entre as mulatas da Bahia e as lisas indochinesas? Não entendo como, na sua idade você está aqui na Europa.”
Não me convinha , então, revelar-lhe os motivos. Para certos assuntos, os estranhos devem continuar estranhos, por menos cautelosos sejamos. Do vinho, violando o bom gosto e as cautelas digestivas, passamos para a cerveja e salsichas, e nos despedimos no Ring, com a indiferença daqueles que não esperam reencontros.
Mas nos revimos. Missão profissional me levara a St. Jean de Luz, no país Basco francês. Ali se vive enganosa segurança e eu, que devia encontrar alguns bons rapazes de Euzkadi-Sul, tinha de me cuidar para não dar bandeira aos agentes espanhóis que deviam estar de olho em meus contatos. Só o vi, felizmente, depois de cumprida a tarefa. Estava montado em velha motocicleta e chegou à estação ferroviária no momento em que eu descia do táxi. Fez-me trocar o destino e seguir com ele até sua terra. Despachou a moto para o destino que era o seu e que me impunha, e se disse livre para um copo de vinho, se eu pagasse. “Da última vez, a conta foi minha, você se lembra? Agora é a sua vez”.
Enquanto esperávamos o trem tomamos vinho navarro, porque ele já não se fiava dos burdôs. “Ainda bem que não há mais família, nem há mais vinhedos. Vendi-os há tempos. Agora os irrigam tanto, para que produzam, que o vinho perdeu a postura.”
Contou-me que a fortuna acabara. Por sorte não se casara, não deixava herdeiros na miséria. Fizera a sua parte, gastando o dinheiro
Não fora boa a volta. A mente ainda estava acesa para certos prazeres, mas os nervos e músculos já se encontravam afeitos ao desconsolo. “Você já ouviu falar em holografia? É um sistema novo que serve para reproduzir imagens em três dimensões. As belas malgaches que eu vi, agora, eram como dessas estatuas de sombra. Eu as via e as queria, mas meus braços não as tocavam.”
Cheguei à aldeia, que um dia fora a vida do derruído castelo da família, na garupa de sua moto. Algumas pessoas saudavam-no com reverência, outros fingiam não vê-lo. “Infelizmente não posso oferecer-lhe hospitalidade, você a recusaria. Eu mesmo, no principio, sentia-me mal. Mas, como é a única propriedade inalienável que me deixaram os antepassados, tenho que me acostumar a pernoitar ali”.
A propriedade era sólida, de granito escuro, tosco, as quinas alisadas pelo sopro dos séculos, um amplo e majestoso tumulo, quase uma capela, adornada por anjos de olhos baixos, jarros sem flores, a relva descuidada em torno do jazigo.
“Ajeitei-o por dentro, dá para espichar as pernas e cozinhar a sopa. O pároco quis expulsar-me, mas o juiz, livre-pensador, reconheceu-me o direito. É uma espécie de adiantamento do legado”, explicou. “Afinal, no futuro, eu vou ficar aqui.”
CAÇA NOTURNA
sexta-feira, 2 de setembro de 2011
GROSELHAS VERDES
sexta-feira, 20 de maio de 2011
OS VINHEDOS DE ÁLAVA
Conversávamos em uma taverna, perto de Durango, em região perigosa, segundo os serviços de inteligência do governo espanhol. Dali procediam, narravam os informes, os mais duros combates de Euzkadi Ta Azkatasuna, que vocês conhecem pelas iniciais. Não tínhamos por que nos prevenir. Naquele distrito, todos sabiam, os delatores eram tratados a bala de nove milímetros. As pessoas chegavam e o saudavam, em basco; ele respondia com parcimônia. Com parcimônia também bebia seu vinho, de Alava.
- Não há segredo. Nós somos mais apegados a esta terra do que talvez outros sejam a seu torrão, porque estou certo de que aqui nascemos. Não há, na memória de nosso povo, caminhos mais longos do que os atalhos entre os vales dos Pirineus, de Navarra ao mar. Mas todo povo é a sua terra.
Ergueu o copo de vinho, olhou-o, o tom rubro contra a luz da tarde. Depois partiu uma fatia do queijo caseiro, vindo de bem perto, de Ermua.
- Somos feitos de nossa terra. É isto que a Bíblia quer dizer. Deus não buscou o barro longe, para esculpir Adão. Arrancou-o dali mesmo, do chão do Paraíso. Por isso, quando houve a transgressão, Deus o puniu, expulsando-o de seu país. Neste vinho, que alegrará meus nervos e meu sangue, está a boa terra basca. A vinha a buscou, em suas raízes, temperou-a com o sol e refrescou com estas águas, que aqui não faltam. E este queijo é também terra de nosso país. Terra que se abrandou no caule do capim. Veio a ovelha e o comeu. Quando o bebemos e assamos o cordeiro, é a terra feito seiva e carne que irá transformar-se em nossa seiva e nossa carne. Como pode alguém viver longe de seu canteiro?
O taverneiro ouvia-o e o aprovava com a cabeça. Estávamos próximos do balcão, em um canto. Naquela hora eram escassos os fregueses, que chegariam quando a tarde envelhecesse.
- Temos muitos compatriotas na América, mas no peito de cada um deles haverá sempre o calor deste vinho. Eles não se foram porque quisessem. Um dia voltarão, ainda que tenham que voltar em seus filhos e em seus netos. Mas, embora eu compreenda suas razões nunca sairei deste chão. Vou até a muga, isto é, a fronteira, de nosso país, mas nunca a transponho. Tenho medo por dentro. Temo que, saindo de Euskadi, não o reencontre, ao voltar. E sempre me dá a impressão de que estarei saqueando os outros, se beber de seu vinho e comer de seu pão.
Senti-me incomodado com a observação. Afinal, eu estava ali, bebendo do seu vinho basco, comendo do pão e do queijo daquelas terras. Ele sentiu meu ligeiro constrangimento e se desculpou. Talvez estivesse sendo exagerado, mas era o problema da língua. Citou-me então a outra versão, mais robusta, do provérbio do pássaro e seu canto: Zakur aundiak, zaunka aundia. O ladrido é do tamanho do cão.
- Você não é forasteiro. Você é viandante. Esta diferença não é tão pequena como possa parecer. Somos hospitaleiros, sempre fomos. Mas, tocar em nossos campos é rasgar as nossas terras, como fazem os de Castela, é como violar as nossas mulheres. Recebemos bem todos os estrangeiros, e deles será o nosso pão e o nosso vinho, se trouxerem a paz nos olhos, mas quando trazem a cobiça na mira de suas armas, temos o dever da resistência.
Pouco a pouco a taverna foi se enchendo de bascos que deixavam o trabalho e chagavam para o vinho do anoitecer. Alguns falavam a língua da terra, em sua pureza. Outros a misturavam com o castelhano. E havia, entre eles, trabalhadores andaluzes, que pediam os vinhos secos de Cádiz e o brândi de Jerez.
- Estes tampouco são forasteiros. São expulsos de sua pátria andaluza, mas não pelo castigo de Deus. Como você vê, eles têm seu caráter, e renovam o sangue com o vinho de sua própria terra.