De vez em quando ele deixava escapar uma frase em basco, e isso me perturbava. Traduzia-a, sorrindo, e explicava que seu excurso, em língua estrangeira, não era rigorosamente fiel ao pensamento. Txori txikia, abesti txikia, citou o provérbio de seu povo, segundo o qual o pássaro canta de acordo com o seu tamanho. Poderia ter acrescentado que o canto também depende da plumagem e da proporção entre o corpo e as asas, mas não era preciso. O ditado popular lhe bastava.
Conversávamos em uma taverna, perto de Durango, em região perigosa, segundo os serviços de inteligência do governo espanhol. Dali procediam, narravam os informes, os mais duros combates de Euzkadi Ta Azkatasuna, que vocês conhecem pelas iniciais. Não tínhamos por que nos prevenir. Naquele distrito, todos sabiam, os delatores eram tratados a bala de nove milímetros. As pessoas chegavam e o saudavam, em basco; ele respondia com parcimônia. Com parcimônia também bebia seu vinho, de Alava.
- Não há segredo. Nós somos mais apegados a esta terra do que talvez outros sejam a seu torrão, porque estou certo de que aqui nascemos. Não há, na memória de nosso povo, caminhos mais longos do que os atalhos entre os vales dos Pirineus, de Navarra ao mar. Mas todo povo é a sua terra.
Ergueu o copo de vinho, olhou-o, o tom rubro contra a luz da tarde. Depois partiu uma fatia do queijo caseiro, vindo de bem perto, de Ermua.
- Somos feitos de nossa terra. É isto que a Bíblia quer dizer. Deus não buscou o barro longe, para esculpir Adão. Arrancou-o dali mesmo, do chão do Paraíso. Por isso, quando houve a transgressão, Deus o puniu, expulsando-o de seu país. Neste vinho, que alegrará meus nervos e meu sangue, está a boa terra basca. A vinha a buscou, em suas raízes, temperou-a com o sol e refrescou com estas águas, que aqui não faltam. E este queijo é também terra de nosso país. Terra que se abrandou no caule do capim. Veio a ovelha e o comeu. Quando o bebemos e assamos o cordeiro, é a terra feito seiva e carne que irá transformar-se em nossa seiva e nossa carne. Como pode alguém viver longe de seu canteiro?
O taverneiro ouvia-o e o aprovava com a cabeça. Estávamos próximos do balcão, em um canto. Naquela hora eram escassos os fregueses, que chegariam quando a tarde envelhecesse.
- Temos muitos compatriotas na América, mas no peito de cada um deles haverá sempre o calor deste vinho. Eles não se foram porque quisessem. Um dia voltarão, ainda que tenham que voltar em seus filhos e em seus netos. Mas, embora eu compreenda suas razões nunca sairei deste chão. Vou até a muga, isto é, a fronteira, de nosso país, mas nunca a transponho. Tenho medo por dentro. Temo que, saindo de Euskadi, não o reencontre, ao voltar. E sempre me dá a impressão de que estarei saqueando os outros, se beber de seu vinho e comer de seu pão.
Senti-me incomodado com a observação. Afinal, eu estava ali, bebendo do seu vinho basco, comendo do pão e do queijo daquelas terras. Ele sentiu meu ligeiro constrangimento e se desculpou. Talvez estivesse sendo exagerado, mas era o problema da língua. Citou-me então a outra versão, mais robusta, do provérbio do pássaro e seu canto: Zakur aundiak, zaunka aundia. O ladrido é do tamanho do cão.
- Você não é forasteiro. Você é viandante. Esta diferença não é tão pequena como possa parecer. Somos hospitaleiros, sempre fomos. Mas, tocar em nossos campos é rasgar as nossas terras, como fazem os de Castela, é como violar as nossas mulheres. Recebemos bem todos os estrangeiros, e deles será o nosso pão e o nosso vinho, se trouxerem a paz nos olhos, mas quando trazem a cobiça na mira de suas armas, temos o dever da resistência.
Pouco a pouco a taverna foi se enchendo de bascos que deixavam o trabalho e chagavam para o vinho do anoitecer. Alguns falavam a língua da terra, em sua pureza. Outros a misturavam com o castelhano. E havia, entre eles, trabalhadores andaluzes, que pediam os vinhos secos de Cádiz e o brândi de Jerez.
- Estes tampouco são forasteiros. São expulsos de sua pátria andaluza, mas não pelo castigo de Deus. Como você vê, eles têm seu caráter, e renovam o sangue com o vinho de sua própria terra.
2 comentários:
Grande Mestre Santayana, era seu leitor assíduo para entender e saborear melhor o Brasil e o Mundo no JB em papel. Graças a uma querida ex-aluna descobri seu site, que texto maravilhoso sobre o valor da terra natal!
Sr. Mauro...
procurei em seu site um texto seu chamado ALÉM DO ESTUÁRIO e não o encontrei. Tentei também pelo Google, sem sucesso.
Gostaria imensamente de relê-lo. Seria ousadia de minha parte pedir-lhe que o publique ou o mande para mim? (sandrabasili@yahoo.com.br)
Obrigada!
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