quinta-feira, 14 de março de 2013

A MATRIARCA


              Nunca voltamos. Os lugares mudam todos os dias, como também mudamos. As lágrimas cavam rugas em nosso rosto e as chuvas abrem feridas na paisagem de nossa infância; assim como nós, as casas e as ruas, as árvores e os jardins, estão sempre mudando, porque o tempo as conduz nesse êxodo rumo ao nada, mais próximo de nós, menos próximo das pedras e riachos, das montanhas e rios, que duram muito mais do que a efêmera carne que nos veste a alma.
              Mas se não voltamos ao mesmo lugar, posto que o lugar é sempre outro, voltamos na geografia, em busca do tempo perdido, se posso plagiar Proust. Foi assim que retornei em vão ao velho Pouso do Marimbondo, em que descansavam, no século 18, os tropeiros e seus burros. Como o comércio crescesse e se amiudassem as viagens, uma mulher da vida decidiu levantar ali seu rancho, e servir cachaça e consolo aos passantes. No princípio era só isso. Os próprios tropeiros armavam  trempes e redes, cozinhavam  feijão com charque, roncavam feito bichos, enquanto os burros zurravam. Era de sua promessa a Nossa Senhora que, tirante os deveres de seu ofício, dormiria só, e, só, dormia.
              Com o tempo, surgiram outras raparigas, mais jovens, que ergueram também os seus barracos. De vez em quando uma se emprenhava e paria, como ela mesma, mãe de quatro ou cinco,  e era difícil identificar os pais, sempre esquivos, posto que todos de mulher fixa longe dali, e dinheiro miúdo. E o Pouso do Marimbondo se transformou em patrimônio, com capela devotada a Santa Maria Madalena, como era de seu direito, e depois em distrito, na balbúrdia daquela promiscuidade.
              Ali, em cidade crescida,  passei a infância, descendente longínquo daquela pioneira, sem saber de que linhagem procedia; se dos morenos abugrados, se dos portugueses temperados de mestiçagem. Quando fiquei rapazola, meu pai, ficando viúvo, demandou outros destinos, e de lá saí, montando jumentinha castanha, isso faz muito mais de meio século. Voltei, pensando em comprar fazenda,   faz alguns meses. Na prefeitura me deram um folheto sobre o município: “Pouso do Marimbondo foi criado por bandeirantes que combateram os bugres, e aqui construíram um forte. Chamou-se Pouso do Marimbondo porque o chefe da bandeira, Manuel Lopes Salgado, nobre português de Trás-os-Montes, que estava acompanhado de sua mulher, foi picado por um marimbondo-cavalo, quando levantou a sua primeira casa de pedra, cujas ruínas podem ser vistas à margem do riacho, na praça central”. Vi o que ficara do tugúrio de Chiquinha Dengosa, a esquecida e solidária matriarca da cidade hipócrita e ingrata.     E parti de novo, para nunca mais voltar.              

domingo, 24 de fevereiro de 2013

PLANO DE VÔO


   Esperou que todos saíssem, naquela manhã de domingo, e trancou por dentro a biblioteca. Bem por detrás de seu amado Quixote, encadernado em belo couro de ovelha,  estavam a cola e a tesoura, ali deixados cinco ou seis anos antes. Mais à esquerda, entre Eça e Emerson,  deslocada da fileira de clássicos mais antigos, a Odisséia, em lombada vermelha, sobressaia-se na estante. Dentro dela, a foto de um menino do princípio do século, de calças justas até o joelho, meias altas, botinas de pelica. Nas mãos do menino, o pássaro de papel.

             Era também de um domingo a imagem.  Haviam matado, um pouco antes,   o Arquiduque da Áustria,  em Sarajevo. O pai e o avô, sentados sobre cadeiras de vime branco, tomavam absinto e comentavam as incertezas do século. Eram, o avô e o pai, bons amigos, como costumavam ser, naquele tempo, sogro e genro.  De dentro da casa vinha o som do piano. Quem o tocaria, naquela manhã tão antiga? A mãe ou a tia? Eram tão parecidas, por serem gêmeas, com seus cabelos longos, que ele só as distinguia pelo hálito. O beijo da tia cheirava a alcaçuz; o da mãe trazia o aroma de água fresca.

           De repente ele se viu, naquele ano de guerra,  no meio da varanda, o pássaro de papel entre as mãos. O avô e o pai se aproximaram para ajudá-lo. Disputavam, lembrava-se bem, a alegria de lhe ensinar como armá-lo, prendendo-lhe as asas e lhe torcendo a cauda. Segurou o brinquedo com as duas mãos, finas e magras, para que o pai o fotografasse, com a luz da manhã favorecendo o foco,  e o libertou para o primeiro vôo. O avô lhe disse “muito bem”, e o pai afagou-lhe a cabeça. Ambos voltaram, em seguida, ao absinto e aos perigos do tempo.

           Buscou na gaveta, o resto do material. Com a grossa lupa de entomólogo amador, com a qual satisfazia, rapazola, a curiosidade sobre o sexo   dos gafanhotos e louva-deuses, examinou os detalhes do brinquedo, que a esmaecida foto deixava perceber. Com o lápis riscou na cartolina  as linhas básicas. Acendeu a forte luz sobre a escrivaninha e começou a trabalhar.

          Se o pai e o avô estivessem ali, a seu lado, saberia como fazer bem as coisas. Eles, na certa, conheciam a anatomia daquela ave, com as asas bem riscadas, o dorso verde, o peito amarelo. O avô viria apontar, com o indicador de unha polida, onde colocar os olhos do pássaro, e o pai dobraria a cartolina para nela recortar a ponta das penas. E quando o pássaro estivesse apto para o vôo,  o soltaria.  Içar-se-ia então entre as velhas árvores, até flutuar ao longo do alto muro. Depois cairia extenuado, as asas abertas, sobre o chão salpicado de margaridas miúdas, avoengas daquelas que cobriam o mesmo e pequeno prado de seu tempo de menino.  Por mais viajasse pelo mundo, nunca deixou de viver na mesma casa – e, depois da morte dos pais, no mesmo quarto em que nascera.

         De onde teriam trazido o brinquedo? Talvez da Europa. De lá regressara, um pouco antes, o avô. Era possível que fosse passageiro de uma daquelas grandes arcas, abertas com gritos de espanto pelas mulheres de casa, com peças de seda, cambraias finas da Holanda, linhos de Dublin,  garrafas de bourgogne, absinto e armanhaque. O avô falava nos novos automóveis, citava o nome de Bleriot, confessava-se espantado com o progresso de Paris.

         Deixou um pouco o papel, a tesoura, o vidro de cola e o arame, examinou a corda do relógio. Não se enferrujara, quando, um dia,  o despertador se cansara, o coração metálico obstruído pelo pó e pelo óxido dos anos. Abriu-o, e dele retirou a corda: ela bem serviria para transferir às asas do pássaro a força de seus dedos.

         Agora sabia que seu brevê viera do brinquedo de papel. O pequeno aeroplano, comprado de segunda mão em Montevidéu, fora pintado com as mesmas cores: verde, amarelo, negro. Mais tarde, quando os negócios cresceram – e cresceram à sua revelia – possuíra  o  mais  veloz  dos “beechcrafts” do país, as asas chatas, a aerodinâmica ajustada a seu prazer de cruzar sobre os altos montes, como atento e responsável gavião.

         O telefone tocou, lentamente se aproximou do aparelho, retirou-o do gancho, não respondeu. Era preciso isolar-se, aproveitar o dia sem filhos, sem noras e sem netos, recuperar o pássaro. Não saberia dizer como o perdera; se ratos o haviam roído, se a umidade desfizera suas asas coloridas, se ele fugira em busca de azuis mais fortes.

          No fim da tarde concluiu a tarefa, era verão, o sol brilhava firme. Abriu a janela, a luz de fora banhou os retratos antigos, simetricamente dispostos nos lambris laterais. Ele estava ali, em suas roupas vistosas de aviador, ao lado das hélices de todos os aparelhos que o dinheiro lhe havia permitido.

          Experimentou a cola: o pássaro estava sólido, torceu-lhe a cauda, como lhe haviam ensinado o pai, o avô. Chegou à janela, soltou-o, e o viu ganhar altura, disputar com a brisa do domingo o espaço, e desaparecer, bem longe, além das copas das árvores mais altas.