segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O CIGARRO MOLHADO

A súbita, ou insistente, lembrança de coisas ínfimas, costuma ser a chave da memória, para que revivamos momentos fortes da vida. Pode ser um cigarro que não se acendeu, por estar úmido, ou o esbarrão em qualquer desconhecido, na saída de metrô, em Roma ou Madri. No seu caso, foi o cigarro. Era madrugada em tempo de desesperado apego ao fumo, e  chegara ao hotel, com a roupa totalmente molhada pelo aguaceiro inesperado. Viera do restaurante, na cidade desconhecida, na mesma rua do hotel, mas a quatro quarteirões, o que serviria a uma boa caminhada.
         Havia encontrado o restaurante, vietnamita, por acaso, e a curiosidade o levara a pedir  meia dúzia de pratos exóticos, começando pelos invariáveis enrolados de ervas em papel de arroz. Mas a situação inusitada, a de entrar em restaurante oriental, passada a meia noite, e em país do norte da Europa, nada  diria, se não fosse o cigarro molhado pela chuva, enquanto , ainda jovem, corria o meio quilômetro para chegar ao hotel garni. A vantagem desses pequenos hotéis, sem porteiros durante a noite, é que você recebe suas duas chaves, a da porta principal e a do quarto, e quase nunca  vê alguém. Assim, pôde entrar, tirar a roupa – e procurar o cigarro , a fim de se repor da corrida. Para o fumante, até o cansaço é um apelo à nicotina.
          Retirou o cigarro do maço, e viu que todos eles estavam encharcados, como também algumas cédulas que levava no bolso do outro lado do paletó. Achou que bastariam duas tragadas, e retirou de outro bolso o belo isqueiro de prata, um de seus poucos e  pequenos luxos. A chama era forte, chama para acender charutos, e levou-a à ponta do cigarro. De nada adiantou.Só sentiu o aroma alterado do fumo, que o incitou ainda mais. Decidiu, então, vestir o terno de reserva e esperar, já embaixo, a chuva passar. Iria buscar um bar que estivesse aberto, a fim de comprar o maldito cigarro, sem o qual não poderia dormir. Assim fez. Havia mais ou menos meia hora que esperava, a chuva continuava e ele estava em estado de quase desespero, olhando pela fresta da porta,  disposto a molhar-se outra vez – mas se lembrou de que, então, não teria o que vestir ao deixar o hotel na manhã seguinte.
         Foi quando a porta se abriu para o desconhecido. Viu logo que estava bêbado, pelo cheiro e pela voz enrolada, com que disse boa noite. Respondeu, com timbre neutro, ao cumprimento; não gostava  de conversar com estranhos. Mas a situação era diferente e o desconhecido vinha protegido por uma sólida capa de gabardine: quem sabe teria um cigarro seco que pudesse aliviá-lo?
         O outro  deu o cigarro, mas resolveu contar sua história, engasgadas de brandi as palavras. Convidou-o a seu quarto, mas disso ele soube esquivar-se, mostrando o pequeno salão ao lado, em que serviriam o café da manhã, onde poderiam falar-se. O recém-chegado despejou a desgraça: sua mulher o deixara, havia poucos dias, e, pelo que soubera, ela o trocara “por um encardido sulamericano”. Tratou de falar muito rápido, para que o desconhecido não lhe identificasse o sotaque, e agradeceu, pelo menos naquele momento, a circunstância de sua ascendência européia, de pele e olhos claros; não podia ser visto, pelos  olhos magoados do interlocutor, como um mestiço schmutzig, como o nórdico  se referira, com desdém, ao seu rival.
          O que ele lhe poderia dizer? Pensou em ser franco:  nada tinha a ver com aquilo. Que o outro procurasse um amigo velho, o pastor ou o padre, conforme sua crença e, no último caso, um psiquiatra que lhe receitasse uma pílula qualquer de esquecimento, ou do regozijo. Lembrou-se de um colega brasileiro, que aconselhava, em casos semelhantes, arranjar outra mulher imediatamente, nem que fosse por pouco tempo,  mas mulata: ninguém melhor do que uma mulata para curar dor de cotovelo.
            Pediu desculpas por não saber ajudá-lo, em  questão tão pessoal e íntima. Se ele quisesse um conselho sobre o mercado de capitais, talvez  lhe pudesse ser útil, mas não em assuntos como aquele. Ousou saber de que cidade era o homem triste e bêbado, e ele disse. Disfarçou o olhar, para não enfrentar o rosto do outro, e lhe perguntou o nome. Ao ouvi-lo, teve certo desassossego. Para ter certeza, jogou seu verde, ao aconselhá-lo a arranjar imediatamente uma mulata que o consolasse naquela circunstância.
            Não soube se o outro sorriu, ou se fez uma careta, posto que  mirava os  sapatos ainda úmidos que lhe esfriavam os pés.
            - Mas ela é mulata, meu caro, do Haiti, e de olhos azuis - disse o bêbado.
            Concluiu que nada podia realmente fazer, deu boa noite, subiu. Fechou bem a porta do quarto, dando duas voltas na chave, arrumou a maleta, com a roupa molhada envolvida no exemplar de “Die Welt” daquele dia, e, como já pagara a diária, como é costume nesses hoteizinhos, em lugar de sair às seis, partiu logo que estiou. Ao passar pela porta não olhou para o pequeno salão de café, mas teve a certeza de que o outro ainda estava por lá, esparramado no sofá de espera.  Tomou o primeiro trem de volta a Berlim, onde o aguardava uma mulata haitiana, de belos olhos azuis. E é claro, que depois daquilo, não esperou uma semana para trocar de país, levando a mulher para  o seu novo destino.
          
        




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