quinta-feira, 14 de março de 2013
A MATRIARCA
domingo, 24 de fevereiro de 2013
PLANO DE VÔO
quinta-feira, 2 de agosto de 2012
AS ROSAS DE AGOSTO
"Guardei-a, até que se desfez, aquela rosa de agosto", conta-me a amiga de Madri. "Procurei, depois, uma fotografia sua, mas os pais desapareceram de Zamora. Não sei se viveram muito depois disso: ela era a única filha. Eles se haviam casado tarde. Não creio que arranjassem, em qualquer lugar do mundo, um pouco que fosse de alegria."
A amiga de Madri era menina durante a Guerra Civil. Antes que fizesse 11 anos, os fascistas tomaram a cidade e Maria foi presa.
“Nós éramos muito amigas. Ela me ensinava as coisas. Tinha um ano a mais. O corpo começava a tomar formas de mulher. E eu lhe invejava os seios que nasciam. Mas era maior em muitas outras coisas. Fazia versos. Recitava-os. Não eram versos piedosos ou bonitinhos. Falavam de justiça, de paz, de igualdade. Não foram os pais que lhe ensinaram coisas assim. Eu acho que ela descobriu sozinha, ou aprendeu com um de seus professores no colégio, que era socialista"
A amiga não se lembra se foi no aniversário da instauração da República ou em outra data nacional que houve o desfile. Deve ter sido em abril, porque a Frente Popular estava no poder. Maria foi escolhida para levar o estandarte. Estava muito bonita, as cores do rosto realçadas pela pintura discreta.
“Eu mesma ajudei a arrumá-la. Depois marchamos pela avenida principal, ela à frente, levando a bandeira. Na porta do ayuntamiento paramos e houve discursos. Maria subiu até o estrado, agitou a bandeira e gritou “Viva a República!”. Depois a formação se dissolveu e fomos juntas levar o estandarte ao colégio. "
Maria, conta a amiga, lia muito e era, na sua classe, das mais adiantadas. As meninas ricas olhavam-na de lado porque era bela, inteIigente, solta. Os pais eram comerciantes pobres, tão discriminados na sociedade daquele tempo como os trabalhadores. Possuíam pequeno armazém, onde vendiam vinho e azeite a granel. As vezes Maria ficava no balcão, para que os dois pudessem sair juntos.
“Quando os fascistas tomaram Zamora, um grupo da 'Falange' prendeu Maria, de madrugada. Eu soube depois que estava, entre eles, um irmão do padre de nossa paróquia, que uma vez jogara um ‘piropo’ a Maria, e ela lhe disse que o dirigisse ao senhor cura, que também usava saias. Era um rapaz esquisito, de espinhas na cara, que não era de andar com amigos nem de fazer 'piropos' normalmente. Eu acho que ele se atreveu naquele dia porque Maria e eu vínhamos do campo e atravessávamos sozinhas a ponte. Pois bem, ele fazia parte da 'Falange' e a gente não sabia. Prenderam Maria e a levaram para uma casa de freiras. Das freiras que tomavam conta do hospital. Ali a fecharam em um quartinho e, em agosto, a fuzilaram... "
Minha amiga de Madri se chama Libertad. Mas, a partir de 1936, com o triunfo de Franco, mudaram-lhe o nome para Luísa. Por ordem das autoridades, os oficiais de registro civil rasuraram os livros de nascimentos, trocando nomes como Libertad, Alba, Alegria. Isso sem falar nos nomes bascos, por nomes bem católicos. "Soledad podia, mas Libertad, não." A minha amiga de Madri sorri.
“Mas, na escola, meus amigos continuaram a chamar-me Liber, como sempre. Eu, distraída, ganhava faltas porque não respondia ‘presente' na hora da chamada. Oficialmente continuo sendo Luísa até hoje mas nunca assinei este nome. Usei sempre de uma saída esperta: abreviava o Luísa com o ‘L” de Libertad."
Maria morreu em um domingo, juntamente com outros, e pela madrugada. "Eu acordei com os tiros regulares, que vinham do cemitério. Ouvíamos tantos tiros pela madrugada que eu não podia saber que um daqueles se disparava contra o coração de minha amiga. No dia seguinte, os pais, só os pais, foram autorizados a vestir o corpo e a enterrá-lo. Meu pai e minha mãe me contaram e me disseram que chorasse escondida em meu quarto. Não chorei. Fui ao jardim, apanhei a rosa, a maior e mais vermelha de todas as que havia naquele agosto. Guardei-a até que suas pétalas se desfizeram com o tempo. "
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
O CIGARRO MOLHADO
quarta-feira, 21 de setembro de 2011
DUAS MIL LUAS
terça-feira, 6 de setembro de 2011
OS AROMAS DO MUNDO
Era, como me disse na primeira vez que nos vimos, um europeu degenerado. Seu caráter, confessava com saudade, fora amolecido pelo calor dos trópicos, e ele os conhecia “na cintura baixa do mundo”, de um lado e do outro. Vivera a boa latitude sul na América, na África e na Ásia, e guardara melhores lembranças de Madagascar, aonde fora como funcionário do colonialismo francês, menos por necessidade e mais pelo exotismo da grande ilha. Ali se convertera a vagabundagem bem amparada pela renda de vinhedos da Gironda, explorados por sua família desde os tempos do ducado de Aquitania.
“Descobri que, nos trópicos, os sentidos se aguçam, porque as coisas têm mais essência. Não me lembro bem dos aromas de nossa casa, e os meninos sempre têm narinas sugadoras, mas não me esqueço do cheiro das mestiças dos portos de Majunga e Tamatave”, me dizia, em um bar da Schiffamtsgasse, em Viena, bem perto de Danúbio.
Tenho sempre o espírito desarmado diante dos estranhos, porque me tocou viver muito entre eles e ser um deles. Naquele tempo eu morava em Praga e ia com freqüência à Áustria. Ele estava de passagem, e fiel a si mesmo, buscara o cais fluvial. “Quem não tem mar se arranja com os rios”, me falava enquanto tomávamos excelente vinho romeno.
E continuou a defender a tese de que só vale a pena viver nos trópicos, mas enquanto se pode bem desfrutar dos prazeres do mundo. “Não são apenas os cheiros: são também as cores. Não há delicadeza nos tons; são agressivos. Tampouco se separam bem uns dos outros, as cores acompanham a vontade geral de promiscuidade e de troca de identidade: há verdes que amarelam, e amarelos que invadem o campo do azul. Agora, quando chegam as cataratas aos olhos, para que servem os trópicos? Quando bambeiam todas as pernas do homem, por viver entre as mulatas da Bahia e as lisas indochinesas? Não entendo como, na sua idade você está aqui na Europa.”
Não me convinha , então, revelar-lhe os motivos. Para certos assuntos, os estranhos devem continuar estranhos, por menos cautelosos sejamos. Do vinho, violando o bom gosto e as cautelas digestivas, passamos para a cerveja e salsichas, e nos despedimos no Ring, com a indiferença daqueles que não esperam reencontros.
Mas nos revimos. Missão profissional me levara a St. Jean de Luz, no país Basco francês. Ali se vive enganosa segurança e eu, que devia encontrar alguns bons rapazes de Euzkadi-Sul, tinha de me cuidar para não dar bandeira aos agentes espanhóis que deviam estar de olho em meus contatos. Só o vi, felizmente, depois de cumprida a tarefa. Estava montado em velha motocicleta e chegou à estação ferroviária no momento em que eu descia do táxi. Fez-me trocar o destino e seguir com ele até sua terra. Despachou a moto para o destino que era o seu e que me impunha, e se disse livre para um copo de vinho, se eu pagasse. “Da última vez, a conta foi minha, você se lembra? Agora é a sua vez”.
Enquanto esperávamos o trem tomamos vinho navarro, porque ele já não se fiava dos burdôs. “Ainda bem que não há mais família, nem há mais vinhedos. Vendi-os há tempos. Agora os irrigam tanto, para que produzam, que o vinho perdeu a postura.”
Contou-me que a fortuna acabara. Por sorte não se casara, não deixava herdeiros na miséria. Fizera a sua parte, gastando o dinheiro
Não fora boa a volta. A mente ainda estava acesa para certos prazeres, mas os nervos e músculos já se encontravam afeitos ao desconsolo. “Você já ouviu falar em holografia? É um sistema novo que serve para reproduzir imagens em três dimensões. As belas malgaches que eu vi, agora, eram como dessas estatuas de sombra. Eu as via e as queria, mas meus braços não as tocavam.”
Cheguei à aldeia, que um dia fora a vida do derruído castelo da família, na garupa de sua moto. Algumas pessoas saudavam-no com reverência, outros fingiam não vê-lo. “Infelizmente não posso oferecer-lhe hospitalidade, você a recusaria. Eu mesmo, no principio, sentia-me mal. Mas, como é a única propriedade inalienável que me deixaram os antepassados, tenho que me acostumar a pernoitar ali”.
A propriedade era sólida, de granito escuro, tosco, as quinas alisadas pelo sopro dos séculos, um amplo e majestoso tumulo, quase uma capela, adornada por anjos de olhos baixos, jarros sem flores, a relva descuidada em torno do jazigo.
“Ajeitei-o por dentro, dá para espichar as pernas e cozinhar a sopa. O pároco quis expulsar-me, mas o juiz, livre-pensador, reconheceu-me o direito. É uma espécie de adiantamento do legado”, explicou. “Afinal, no futuro, eu vou ficar aqui.”