sexta-feira, 2 de setembro de 2011

GROSELHAS VERDES


Você já comeu doce de groselhas verdes? - perguntava a mocinha à outra, na lanchonete da Na Prickopé, em Praga. Era setembro de 1968, e o vento, que soprara forte pela madrugada, amainara. Olhei a jovem, que me devolveu a mirada, perturbei-me um pouco. Não havia entendido bem o sotaque, provavelmente moravo, da jovem, que falava apressadamente,  e por isso  confundira rybiz, a frutinha silvestre, com ruze, a flor. Não podia imaginar rosas verdes, nem maduras,  e por isso os meus olhos se desviaram novamente para a mesa, a uns quatro metros de distância. A outra, ao dizer que não, repetiu o substantivo e o adjetivo, afirmando que provavelmente o doce seria ácido.
          Um desses autores de best-sellers americanos, Dale Carneggie, disse que se a vida desse a alguém um limão, o remédio seria fazer uma limonada. Lembrei-me então, naquela manhã de Praga, que conhecera um homem que fizera isso, Oséas, do Leprosário Santa Isabel, perto de Belo Horizonte. Em 1959 ou 60, já não me lembro bem, havia visitado, com minha mulher, aquela colônia de enfermos, a fim de fazer uma reportagem para a Ultima Hora.
          Todas as coisas naturalmente horríveis eram mais horríveis naquela cidade. Nada faltava ao conjunto, na verdade uma pequena cidade,  com seus ambulatórios e suas enfermarias, os grandes refeitórios e algumas cozinhas, exploradas particularmente por certos internos, que forneciam melhora de comida para tornar mais agradável a alimentação do Governo: pedaços de frango, verdura cozida, bagres e acarás do Rio Paraopeba,  torresmos. Wania, que não fizera ainda 18 anos, ficou muito triste quando visitamos o lupanar,  na hora do crepúsculo, quando as  prostitutas se preparavam para “fazer a vida” na noite que chegava. Maquiavam-se,  refazendo, a crayon,  as sobrancelhas perdidas, desenhando a linha de lábios sobre bocas dilaceradas, ocultando as orelhas mutiladas com as madeixas dos cabelos naturais e dos cabelos postiços.
            Mas nada, nada mesmo, nos marcou tanto como a paixão de Oséas pela vida. Nós o havíamos visitado pela manhã,  prostrado em seu leito, sofrendo de outras doenças além da lepra, como  diabetes e nefrite crônica. Talvez não tivesse ainda cinqüenta anos, e se encolhia sobre a cama, colocada ao lado da janela, de onde  podia ver as flores - rosas, jasmins do cabo, damas da noite - crescerem com o seu perfume.
       “As flores, nos disse, com tímido sorriso, são como as mulheres, mudam de cheiro enquanto crescem. Tenho pouco olfato, a doença me comeu as narinas, mas o pouco que eu tenho mostra isso. Os botões têm um perfume; as flores abertas, outro; e o melhor de todos os perfumes é aquele exalado quando as flores começam a ficar maduras. Parece até mesmo que uma coisa compensa a outra: quando as flores vão perdendo a cor, soltam  perfume bem suave, e muito mais chamativo”.
            Oséas conseguira   o transmissor de rádio, montado sobre  plataforma giratória, e o colocava de forma a operá-lo, mesmo deitado. Aprendera inglês e espanhol, para comunicar-se com outros paises do mundo. Os radio-amadores, sabendo de seu drama, o ajudavam, e ele tinha o melhor equipamento da época. Com o que lhe restava de dedos - três em uma das mãos, dois na outra - manobrava os controles e conversava com seus colegas. Era o que lhe sobrava da vida: a voz distante, de amigos tão remotos, cujos olhos os seus jamais visitariam; a visão do céu e das flores, dos raros pássaros que freqüentavam os pequenos arbustos plantados junto à janela, dos bichinhos bem miúdos, como as abelhas e  os gafanhotos verdes, as aranhas que teciam suas redes de caça, e que ele não permitia que fossem perseguidas. A mulher, também leprosa, estava bem melhor, e dele cuidava.  A casa era limpa, arejada, embora a dona tivesse os pés inchados e provavelmente deformados, envoltos por chinelas de goma, e as mãos atrofiadas, de falanges perdidas.
         “A moça sabe - disse a mulher de Oséas a Wania - a gente se acostuma tanto a estas coisas, a este sofrimento, que se não fosse a dor, que  ataca até os ossos, não havia muita diferença entre estar aqui e estar lá fora”. E disse que nem mesmo atinavam com a deformação de seus rostos. “Como aqui ninguém é bonito, ninguém aqui é feio. Quer saber de uma coisa? Quando vejo uma pessoa com o nariz normal, as pestanas inteirinhas, as mãos com os seus dedos todos, compridos e finos como os de você, minha filha, que Deus me perdoe, me parece esquisito”.
            Ao nos despedirmos, Oséas disse gravemente que a vida sempre vale a pena. “Outro dia ouvi um primo, que veio me visitar, e eu não via desde menino, dizer para o doutor Anselmo, que veio junto, que com tanto sofrimento era melhor morrer. Eu não lhe disse nada,  mas dou a resposta a vocês. Eu quero continuar vivendo, com as minhas dores, mesmo sem poder me levantar daqui, a morféia e o resto  me gastando o corpo pouco a pouco. Eu aqui ouço os passarinhos, vejo os bichos e as flores, escuto a toada da chuva, caindo do beiral,  e ainda tenho de lambujem a conversa com os radioamadores. Você sabe que eles me contam os seus problemas? Há um, venezuelano, que me manda dinheiro de vez em quando, e eu distribuo  com os outros para a melhora de comida. O dinheiro vem pelo banco, leva meses para chegar. É um homem muito rico e  muito infeliz. E ele sempre me diz que o que eu falo com ele é que lhe dá ânimo, que não o deixa desistir. O que falo com ele? Bobagem, igual eu estou falando agora. Falo com ele para sair, procurar uma beira de córrego, olhar os peixes debaixo d’água, ver as nuvens passar, fazer bestagem, como contar as estrelas ao anoitecer. Aqui, no pequeno céu quadrado de minha janela, elas vão chegando devagar e eu vou contando. Cabem trinta e seis com a janela bem aberta,  às dez horas da noite, no verão, e trinta e quatro no inverno: de madrugada elas somem, mas à meia noite aparecem umas bem menores, e eu nunca consegui contar direito, porque as mais miudinhas embaralham a  vista. Eu às vezes fico pensando: se um sujeito conseguir contar todas as estrelas do céu, ele vai ficar sócio de Deus”.
            As duas moças de Praga se levantaram, e uma prometeu à outra que  iria ensinar-lhe como fazer o doce de groselhas verdes. Não resisti, aproximei-me e lhes disse que eu também aprendera a fazer doce de groselhas verdes.
       - Como aprendeu? - indagou a jovem.
       - Com um homem chamado Oséas.


sexta-feira, 20 de maio de 2011

OS VINHEDOS DE ÁLAVA

De vez em quando ele deixava escapar uma frase em basco, e isso me perturbava. Traduzia-a, sorrindo, e explicava que seu excurso, em língua estrangeira, não era rigorosamente fiel ao pensamento. Txori txikia, abesti txikia, citou o provérbio de seu povo, segundo o qual o pássaro canta de acordo com o seu tamanho. Poderia ter acrescentado que o canto também depende da plumagem e da proporção entre o corpo e as asas, mas não era preciso. O ditado popular lhe bastava.


Conversávamos em uma taverna, perto de Durango, em região perigosa, segundo os serviços de inteligência do governo espanhol. Dali procediam, narravam os informes, os mais duros combates de Euzkadi Ta Azkatasuna, que vocês conhecem pelas iniciais. Não tínhamos por que nos prevenir. Naquele distrito, todos sabiam, os delatores eram tratados a bala de nove milímetros. As pessoas chegavam e o saudavam, em basco; ele respondia com parcimônia. Com parcimônia também bebia seu vinho, de Alava.


- Não há segredo. Nós somos mais apegados a esta terra do que talvez outros sejam a seu torrão, porque estou certo de que aqui nascemos. Não há, na memória de nosso povo, caminhos mais longos do que os atalhos entre os vales dos Pirineus, de Navarra ao mar. Mas todo povo é a sua terra.


Ergueu o copo de vinho, olhou-o, o tom rubro contra a luz da tarde. Depois partiu uma fatia do queijo caseiro, vindo de bem perto, de Ermua.


- Somos feitos de nossa terra. É isto que a Bíblia quer dizer. Deus não buscou o barro longe, para esculpir  Adão. Arrancou-o dali mesmo, do chão do Paraíso. Por isso, quando houve a transgressão, Deus o puniu, expulsando-o de seu país. Neste vinho, que alegrará meus nervos e meu sangue, está a boa terra basca. A vinha a buscou, em suas raízes, temperou-a com o sol e refrescou com estas águas, que aqui não faltam. E este queijo é também terra de nosso país. Terra que se abrandou no caule do capim. Veio a ovelha e o comeu. Quando o bebemos e assamos o cordeiro, é a terra feito seiva e carne que irá transformar-se em nossa seiva e nossa carne. Como pode alguém viver longe de seu canteiro?


O taverneiro ouvia-o e o aprovava com a cabeça. Estávamos próximos do balcão, em um canto. Naquela hora eram escassos os fregueses, que chegariam quando a tarde envelhecesse.


- Temos muitos compatriotas na América, mas no peito de cada um deles haverá sempre o calor deste vinho. Eles não se foram porque quisessem. Um dia voltarão, ainda que tenham que voltar em seus filhos e em seus netos. Mas, embora eu compreenda suas razões nunca sairei deste chão. Vou até a muga, isto é, a fronteira,  de nosso país, mas nunca a transponho. Tenho medo por dentro. Temo que, saindo de Euskadi, não o reencontre, ao voltar. E sempre me dá a impressão de que estarei saqueando os outros, se beber de seu vinho e comer de seu pão.


Senti-me incomodado com a observação. Afinal, eu estava ali, bebendo do seu vinho basco, comendo do pão e do queijo daquelas terras. Ele sentiu meu ligeiro constrangimento e se desculpou. Talvez estivesse sendo exagerado, mas era o problema da língua. Citou-me então a outra versão, mais robusta, do provérbio do pássaro e seu canto: Zakur aundiak, zaunka aundia. O ladrido é do tamanho do cão.


      - Você não é forasteiro. Você é viandante. Esta diferença não é tão pequena como possa parecer. Somos hospitaleiros, sempre fomos. Mas, tocar em nossos campos é rasgar as nossas terras, como fazem os de Castela, é como violar as nossas mulheres. Recebemos bem todos os estrangeiros, e deles será o nosso pão e o nosso vinho, se trouxerem a paz nos olhos, mas quando trazem a cobiça na mira de suas armas, temos o dever da resistência.


Pouco a pouco a taverna foi se enchendo de bascos que deixavam o trabalho e chagavam para o vinho do anoitecer. Alguns falavam a língua da terra, em sua pureza. Outros a misturavam com o castelhano. E havia, entre eles, trabalhadores andaluzes, que pediam os vinhos secos de Cádiz e o brândi de Jerez.


- Estes tampouco são forasteiros. São expulsos de sua pátria andaluza, mas não pelo castigo de Deus. Como você vê, eles têm seu caráter, e renovam o sangue com o vinho de sua própria terra.